Ciclo.
Estou no fim dos meus dias.
É tão claro como a luz de todas as manhãs
E tão tenebroso como as sombras da noite
- Tudo me vem atravessar nestas últimas horas.
Raio de consciência infame, coisas com que não consigo lidar
Coisas essas tão simples como a minha vida,
Como o levantar da cama, alimentar-me, respirar, viver o dia,
chegar a casa, deitar-me, dormir ou sonhar acordado...
Coisas perfeitamente normais que afinal todos fazemos.
Normais? Sim, normais. Qualquer um de nós as faz inconscientemente.
Só que eu nunca julguei que me fosse pesar tanto os remorsos
como têm pesado, nunca achei que a consciência me assaltasse
desta forma descabida, louca, cismática, como tem assaltado...
Achei: ah, pelo contrário, irei sempre fazer o que quiser,
eu não preciso de ninguém, não preciso de vós, nada!
Se te queres ir embora, vai-te, vai-te e não voltes nunca mais.
Arrepender-te-ás, pois eu não preciso de ti.
Disse mesmo isto. Disse isto e, pior do que isso, convenci-me disto.
Achei que conseguia sair-me sozinho.
E agora que faço eu aqui, a escrever, nesta solidão sem fim, sem razão?
Que faço eu sentado no meu quarto a ouvir as vozes do arrependimento?
Vozes que me assombram e me tiram a vontade de dormir,
que me fazem soar, soar muito, chorar imenso, gritar como um louco!
E penso: sim, estou arrependido, mas o mal entrou no meu coração
com um grande propósito que é o de me fazer sofrer,
sofrer lentamente, ir morrendo e morrendo e morrendo...
Até estar completamente morto, e mesmo assim, creio eu,
continuarei assombrado e a ouvir vozes.
Talvez isto seja mesmo a minha última inquietação,
o meu último desabafo, os últimos versos...
Talvez acabe agora, já a seguir, sem ver os meus filhos,
sem pedir desculpa à minha mulher, sem dar uma vida digna
aos meus netos... E acabe e caia esquecimento, meu deus...
Ai, meu deus.... Permitam-me suspirar...
Eu acho que vou mesmo findar não tarda. Apago a luz do quarto,
fumo um cigarro (que, isto sim, é a prova que estou morto)
e escrevo isto sem noção de por que razão escrevo.
Ai, meu deus, porque tenho tantas mágoas? Ai, meu deus!
Que eu morro, morro mesmo e eu não quero morrer!
E vou-me deitar com a solidão que a velhice me dá,
com a consciência que posso não acordar mais.
Nada é eterno, nada dura, nem mesmo eu.
Álvaro Machado – 22:00 – 28-03-2014
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